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 A hipocrisia dos pseudointelectuais versus o acolhimento do amor
4 de setembro de 2024

A hipocrisia dos pseudointelectuais versus o acolhimento do amor

Por Márcio Martelli – Há 14 anos, escrevi um livro chamado “Eu tenho duas mães”. É um livro que retrata a minha história, um menino que teve/tem duas mães. Acima de tudo, é um livro que fala de amor, de gente, de relacionamento e de humanidade.

A obra é uma homenagem ao privilégio de poder ter convivido com duas figuras maternas. E a personagem principal do livro conta essa história por meio de um poema, no qual retrata o seu cotidiano e a vida com elas.

Em momento algum do livro, falei das mazelas ou do lado triste, nem da rejeição das pessoas diante desta situação. Sim, as pessoas olham com um olhar triste e preconceituoso para nós que sequer sabemos o porquê de estarmos sendo julgados sem cometer crime algum.

Talvez o crime esteja na mente daquele que julga sem sequer procurar compreender.

Escrevo isso porque cresci em um lar feliz e, em nenhum momento, senti-me diferenciado dos meus outros irmãos – biológicos – desta família. Pelo contrário, talvez eu tivesse sido o mais “mimado” entre eles. É o que ouço e percebo.

Sempre soube desta minha condição e, confesso, que nunca me passou pela cabeça a palavra adoção. Este estigma só veio quando adulto, em uma conversa na qual a pessoa me olhou nos olhos e me disse: “Você é adotado!”. E falou com um certo ranço, que na hora não me abalou, mas me fez pensar no termo e chegar à conclusão de que sim, eu tinha sido adotado por um lar que me criou e no qual sou feliz.

Porém, quando olho para trás, vejo e percebo a quantidade de desprezo com a qual fui tratado por muitos, especialmente familiares que, com a sua ilustre vã sabedoria, julgavam uma situação sem a menor necessidade.

Foi por tudo isso que nasceu o livro “Eu tenho duas mães”, uma catarse literária que, de certa forma, expurgava sentimentos que pudessem estar ocultos dentro de mim.

Na Bienal do Livro de São Paulo, em 2010, realizei o lançamento. Por um capricho do destino, o escritor Walcyr Carrasco, na mesma época, lançou “Meus dois pais”. Coincidência? Talvez uma artimanha do destino ao colocar dois autores, um de renome e um iniciante, versando sobre temas tão semelhantes.

A obra foi um dos destaques desta edição da Bienal. Nunca imaginei que pudesse alcançar tal status, mas aconteceu. A vida do menino que contava sua história sem dizer em momento algum, quem eram suas duas mães e tampouco qual a relação entre elas, tomou um certo vulto e destaque.

No livro, a personagem brinca com o leitor, brinca com a superproteção em dobro, dos carinhos multiplicados por dois, das broncas duplas e por aí vai…

Mas quem são as suas duas mães, ele não conta.

Preferi, como autor, deixar em aberto as possibilidades de leitura dessa relação entre elas: duas mulheres que têm como elo, um filho. Podiam ser elas duas irmãs; mãe e filha; uma mãe que se separou ou ficou viúva e cria, com sua irmã ou mãe, uma criança; uma mãe que faleceu cujo pai casa-se de novo, oferecendo à criança uma nova mãe; ou um casal formado por duas mulheres. E foi aí que a história “pegou”…

Nesta trajetória de 14 anos da obra, muita coisa aconteceu. Coisas muito boas e outras, infelizmente, tristes, mas que não me fizeram desacreditar na humanidade. Ainda acho que o mundo tem jeito.

Vamos aos fatos felizes.

Estava eu, autor, no estande da Bienal, quando adentrou nele uma menina de, aproximadamente, uns 9 ou 10 anos e me perguntou sobre o livro. Ela sequer olhou o que havia lá, foi direto ao que procurava.

Mostrei a ela o exemplar do livro. Ela percorreu suas páginas com os olhinhos brilhando, perguntou-me o valor daquela obra e, num lapso de tempo, quando me virei para ela, já tinha ido embora tendo abandonado o livro sobre o balcão.

Confesso que isso fez doer meu coração. Peguei o livro e tentei achá-la. Seria o meu presente a ela. Em vão. Pensativo, cobrei de mim mesmo um pouco mais de sensibilidade em casos como aquele; mas qual não foi a minha surpresa ao vê-la retornar ao lado de duas mulheres.

As duas, suas mães, cumprimentaram-me e olharam fundo em meus olhos. Compraram o livro. Autografei e recebi um dos abraços mais lindo que a vida me proporcionou. Era de uma das mães me agradecendo a coragem e a ajuda que eu estava dando para todas as crianças.

Emocionei-me. Sequer imaginava o alcance deste livro tão singelo. Como deixei registrado, era apenas uma homenagem.

O livro se esgotou. Recebi ligações de psicólogos e pesquisadores que o utilizaram em suas teses de mestrado e doutorado. Fui entrevistado e ainda não havia entendido o que tinha feito e nem o alcance da obra.

Mas, nem tudo são flores…

Certa vez, uma Secretaria de Educação solicitou algumas de minhas obras, como doação, para as escolas municipais. Entre os livros doados, encontrava-se “Eu tenho duas mães”. Qual não foi a minha surpresa ao receber uma ligação do secretário dizendo que meu livro fora rejeitado por uma diretora que dizia que aquele tipo de livro não entraria em “sua” escola.

Eu perguntei: “Como assim, este tipo de livro?”

O secretário não defendeu nem a mim nem a obra, de certa forma, ratificando a posição da diretora. E o assunto se encerrou.

Mas não foi um caso isolado. Numa outra ocasião, numa feira de livros infantojuvenis, a organizadora da feira também rejeitou o livro porque ele não defendia ideias nas quais acreditava. Que frase infeliz e sem sentido!

Uma grande tristeza se instalou e, mais uma vez, entendi a rejeição pela qual as crianças órfãs passam neste mundo. Pessoas que se dizem intelectuais e com formação superior sobre as coisas do mundo rejeitavam o meu livrinho tão querido.

O tempo foi passando. Recebi muitos pedidos da obra e, neste ano de 2024, resolvi reeditar, desta vez utilizando a ferramenta da Inteligência Artificial que me permitiria um novo olhar sobre as situações do livro.

Assim fiz e retratei, em cada ilustração, casais diferentes criando aquele menino. Nunca são as mesmas mães. Elas estão ali representadas, felizes, amando seu filho e sendo amadas por ele. Foi uma nova vitória.

Recentemente, estive em Recife para um evento de lançamento de um livro sobre os 150 anos da imigração italiana. Levei a obra para expor. Uma senhora o adquiriu. A peculiaridade é que essa senhora é também uma escritora que me descobrira nas redes sociais e, desde então, participa das antologias que organizo pelo mundo afora.

Dentro da sua simplicidade, ela cativou toda a sociedade presente no evento relatando suas aventuras em uma viagem à Itália. Foi um momento impactante.

E por que falo sobre ela? Porque ela me fez uma surpresa dois dias após aquele evento. Numa mensagem em meio a fotos de uma menina segurando meu livro “Eu tenho duas mães”, ela escreveu assim:

“Boa tarde! SURPRESA! 😃
Esther de 2 anos de idade, reconhecendo o livro com seu papai.
Esther escolheu este livro para a ‘Contação de Histórias’.
Esther de 2 anos e 2 meses ficou encantada com a ‘Contação de Histórias’ do livro.
Esther falando com os personagens da história. Falando da sua vovó e do seu papai. Como estivesse na história também.
Esther depois ficou conversando com a Contadora de Histórias Cleoneide. Falando sobre a história que escutou, e de sua vovó, do seu papai. O papai ficou sorrindo bastante com a filha.
Sou muito feliz em ser voluntária Hospital Maria Lucinda Recife/PE. Porque deixo no rostinho de cada criancinha um belo sorriso. Quando finalizo minha missão do dia estou muito mais feliz. O coração ❤️ abastecido de amor ❤️ sincero das criancinhas. Conseguindo diminuir um pouco do sofrimento da doença. Viver é demonstrar o seu melhor na vida das pessoas. Amo MUITOOOOOO ❤️ trabalhar com crianças, adolescentes e adultos quando estão em momentos de sofrimento. Sou receptiva em acolher com o meu melhor.
O LIVRO ‘EU TENHO 2 MÃES’. MÁRCIO MARTELLI. 2° EDIÇÃO. EDITORA: IN HOUSE. FOI UM SUCESSO COM AS CRIANÇAS 😃.

Cleoneide é voluntária Contadora de Histórias no Hospital Maria Lucinda Recife/PE. Todas as terças-feiras, no horário da manhã. Tenho muito amor em realizar, este trabalho, com as criancinhas.”

O que é que a vida traduz com tudo isso?

Que a simplicidade é o segredo. Que a inocência diz tudo por si só. Que o doar-se é uma bênção. Que o acolhimento pertence aos nobres de espírito, e a Cleoneide é um exemplo disso tudo.

Mostrou-me, mais uma vez, que o AMOR VENCERÁ SEMPRE todas as barreiras que os homens tentam impor em nossas vidas. Só tenho de aplaudir e agradecer.

Márcio Martelli é presidente da AJL – Academia Jundiaiense de Letras, doutorando em História e Ensino de Ciências da Terra / Unicamp e escritor e editor de livros

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4 thoughts on “A hipocrisia dos pseudointelectuais versus o acolhimento do amor

Márcio Martellisays:

Primeiramente, muito obrigado por publicar este meu singelo texto. Às vezes, precisamos, sim, regurgitar emoções que um dia nos feriram, pois somente assim a cura virá. Obrigado JundiAqui!

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Regina Kalmansays:

Muito comovente o relato do livro. Agradecida.

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Thaty Marcondessays:

Márcio, sua sensibilidade nos cativa, emociona. Você e seu livro estão acima da mediocridade e dos preconceitos que nem deveriam existir após a leitura do livro e além disso. Enfim: parabéns, pelo livro e pelo texto. E vamos quebrando barreiras. Entendedores entenderão você e suas obras.

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Ana Fláviasays:

Maravilhoso Márcio. Me emocionou, chorei. ❤️🧡💛💚💙💜🖤🩶🤍

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