
Crônica da Cozinha – O tom da harmonização
Pelo chef Manuel Alves Filho
A comida pode ser harmonizada com diferentes elementos. Os mais comuns são as bebidas. Recomenda a boa técnica, por exemplo, que pratos leves sejam acompanhados por vinhos ou cervejas igualmente frugais. Já preparações marcantes costumam pedir escoltas líquidas mais impositivas.
A experiência da harmonização não deve ser considerada, entretanto, uma ciência exata. Subversões são admitidas, desde que tragam prazer ao comensal.
Além das bebidas, as músicas também conjuminam muito bem com a gastronomia, como diria um amigo. Eu, por exemplo, adoro cozinhar ouvindo blues. O gênero, que sugere uma mescla de lamento, sensualidade e expressividade ancestral, combina à vera com a minha personalidade e com o caráter afirmativo da gastronomia que exerço.
A propósito, na minha infância eu já rimava canções e refeições, claro que de maneira intuitiva.
Lembro-me que preferia o rádio à televisão. Por meio do pequeno aparelho receptor, alimentado a pilha, ouvia programas jornalísticos, esportivos e musicais.
No horário do almoço, meu inseparável companheiro estava sempre sintonizado numa emissora que tocava as dez músicas mais pedidas pelo público. Frequentemente, a composição campeã era assinada pela dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
Uma das mais marcantes, para mim, era “Sentado à beira do caminho”, que volta e meia embalava os repastos preparados pela minha mãe, dona Glória.
Os versos da dupla, lapidados em 1969, quando eu tinha somente sete anos, faziam pouco sentido para o pequeno Manu, mas pareciam temperar com precisão o arroz soltinho, o feijão com caldo denso, a salada de chuchu com ovo bem cítrica e a onírica omelete de espinafre.
Ah, quanta saudade do tempo em que degustávamos tanto comida quanto música palatáveis.
Manuel Alves Filho é chef de cozinha e jornalista