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Jundiaqui

 Vidas cruzadas
11 de julho de 2020

Vidas cruzadas

Os sentimentos, as buscas, as surpresas e os muitos obstáculos que invadem nossos relacionamentos permeiam este conto, diz Cláudia Bergamasco

Cláudia Bergamasco

Doralice Ricci era dotada de uma beleza deslumbrante e nascida em uma família instruída de classe média em São Paulo. O pai atuava como advogado tributarista a serviço de uma multinacional, e a mãe era filha também de um respeitado advogado, mas na área civil. Eles não eram excessivamente ricos.

Quando seu pai morreu, ela tinha dez anos e precisou dividir a herança com a mãe e outros três irmãos. Mas eram pessoas cultas e educadas – aparentemente. Doralice, ou Dorinha, como era chamada pela família e pelos amigos, dava assistência a uma casa de crianças e adolescentes órfãos, escrevia poemas, crônicas, gostava de escrever cartas a pessoas que ela imaginava em sua cabeça, já que praticamente ninguém mais escreve a mão e muito menos cartas. Em alguns anos, ela publicaria dois romances, ambos picantes e cheios de passagens que ela própria tinha vivido.

Por volta dos 24 anos, ela se apaixonou perdidamente por um rapaz pouco promissor, segundo análise de seus irmãos e de sua mãe. Nicola Lombardo, 25 anos, escultor e professor de artes, como se apresentava, adepto do budismo, vegano e com tendências a se vestir de forma andrógina e desajeitada. Ela o amava assim mesmo, sem tirar nem por. Ele era amoroso, a cobria de carinhos, cuidados e mimos, como escovar a cascata ruiva de cabelos cacheados em frente ao espelho enquanto seus olhos olhavam dentro dos olhos dela a poucos centímetros de distância. Ou cantar uma música que os dois gostavam até ela dormir em seu colo. Era um amor verdadeiro e profundo.

No entanto, alguns anos depois, desfizeram o relacionamento por desentendimentos entre eles, muitos dos quais gerados a partir de fofocas vindas da família e amigos de Dorinha. Lombardo não aguentou. Amava Dorinha, mas a pressão foi mais forte e ele desistiu de seu futuro com ela em favor da sua sanidade mental e emocional e da manutenção da harmonia da vida dos dois.

Pode ter havido outro motivo para o rompimento. Lombardo estava estressado, fragilizado com as fofocas que pareciam víboras e uma amiga próxima lhe deu ombros e ouvidos. Era Heloísa para quem ele contava tudo o que acontecia entre ele, a namorada e a família da namorada. Eles acabaram se envolvendo intimamente, enquanto Dorinha, já há algum tempo, havia atraído a atenção de Mariano Willy, um empresário emergente, ganancioso, impiedoso, mas de muito bom gosto, fato que escondia um pouco da sua verdadeira persona.

Willy se sentia atraído tanto pela beleza quanto pelo intelecto de Dorinha, mas principalmente pela possível herança que ela receberia quando a mãe morresse, o que lhe propiciaria gordos dividendos, segundo seus cálculos mal calculados.

Quando soube que ela estava solta como um passarinho a voar em ares novos e livres, embora devastada, deu um jeito de fazer com que se encontrassem “por acaso”. Ele sabia que ela frequentava certa biblioteca e acertou data e hora para encontrá-la ali. Pediu à bibliotecária justamente um dos livros que ela escrevera e sentou-se ao lado dela. A moça teve ganas de ir para outra mesa, mas reservada, rosto ardendo em timidez, viu a capa do livro que o homem a seu lado empunhava. Ruborizou e cedeu. Ele logo puxou conversa, jogou seu charme fantasiado de gentleman e, ao final de hora e meia de conversa, a convidou para sair.

Seis meses depois estavam morando juntos no apartamento dele e, exatos seis meses depois Dorinha engravidou.

Além da gravidez indesejada, havia um grande problema nessa relação. Dorinha se sentia numa camisa de força, porque Willy a queria submissa, não deixava que ela fizesse nem decidisse nada sozinha; isso feito com tal docilidade que a deixava sem ação. Com o tempo, a atitude do parceiro foi lhe vincando a testa e baixando os cantos da boca.

E não parava por aí: Doralice, que ainda carregava o filho de Willy na barriga, descobriu que ele já era casado há anos com Fernanda de Albengarti, e mantinha o apartamento em que morava com ela concomitante ao que vivia com Fernanda, com quem já tinha tido um filho.

Parecia que em algum momento da vida, provavelmente quando conheceu Willy, alguma coisa doía sempre. Perdera o sorriso largo, esquecera como era um beijo emocionado. Sentia falta de Lombardo, de como eles conversavam, riam e se entendiam tão bem apenas com trocas de olhares.

Seus pais, ela se lembra, se amavam de um jeito muito peculiar, incompreensível às vezes. Um jeito doente, torto. Ali havia mágoa, raiva, revolta, submissão, mas algo além disso tudo que os mantinha unidos, desses laços que fazem com que pessoas se maltratem mas não consigam se largar. Para eles a vida corria pelo avesso, era a impressão de Dorinha. E vida pelo avesso tem um lado de flor maligna. O tempo, a demência, a velhice recobriam tudo, e nem todo amor que sentiam os conseguiu salvar. Será que com Dorinha seria assim também?

Dorinha massageava as costas de Willy com mãos adejantes que escorregam por suas costas feito chuva. Sem dúvida ela sabia que o homem que a traía gostava muito disso. Não seria surpresa se Willy soubesse que ela tinha investigado seu passado, percebido suas peculiaridades, seus gostos, hábitos e excentricidades. Mas nada a advertiu de uma traição desse tamanho ou de um caráter – ou a falta dele – no companheiro.

Para driblar a situação entre uma e outra família, Willy dava desculpas do tipo excesso de trabalho, necessidade peremptória de expandir os negócios e, por isso, precisava participar de “chateações”, como ele dizia para as duas mulheres, como reuniões com executivos de todo o Brasil e até de fora. Claro que não havia reunião nenhuma. Enquanto “estava fora a trabalho”, em viagens de uma semana, quinze dias, ele revezava sua permanência em um e outro apartamento. Vivia dando desculpas, inventando as mais plausíveis mentiras e, exausto com tudo, vivia num nervosismo só. Mas não deixava Dorinha por nada. Realidade? Bobagem. Cada um inventa a sua. A moça, no entanto, carregava um coração partido que pesava feito um bloco de concreto armado no peito. Ela estava de luto.

VERNIZ DESCASCADO – Eles tiveram brigas feias. Dorinha não conseguia argumentar e pagava para não brigar, mas Willy passou a insultá-la com palavras e atitudes que fariam uma puta corar. A casca de verniz fina daquele homem descascou antes mesmo de ter ficado fosca. Ele mostrou quem era o verdadeiro Mariano Willy. Ele fora educado para ser cruel e treinado para não ter pena. Aproveitou a vantagem sobre Dorinha para esmagá-la como mulher. Era, afinal, um modo de se sentir grande, poderoso e temido – sonho comum de quase todos os homens.

A partir daí, ela se decretou não ser mais vilipendiada, traída, humilhada, brutalizada, vendida, esquecida, ser trocada ou substituída. Dizia a ela mesma que o único modo de realmente descobrir qualquer coisa é esperar por essa coisa. Que o preconceito é uma doença, a infelicidade e a falta de dignidade, de respeito são proibidos, e a burrice é crime inafiançável. Essas coisas passaram a ser mantras em sua vida. Nada de auto-compaixão porque, ela sabia, nessas areias movediças quanto mais ficamos mais somos engolidos.

Willy deveria estar esperando que Dorinha baixasse a guarda, que a confiança, a languidez e a lassidão a acalmasse, a acalentasse. Assim ele poderia agir novamente. “Sinto saudade suas”, ele diria em voz tão baixa que a moça mal conseguiria ouvir e que obviamente seria uma forma delicada de manipulação – de novo. Se manca, Willy, já estou escolada em seus métodos!

Tarde da noite, Dorinha acordava em prantos e proferia insultos contra Willy, que já não dormia naquela cama, mas nas camas de outras mulheres, qualquer uma, até da velha muxibenta, molambenta e lambisgóia da caixa do supermercado só para ganhar um teto para se proteger do frio daquela noite, porque Fernanda o tinha chutado para fora de sua vida. “Você contamina meu ar, meu sono, minha vida. Você, decrépito, estragou tudo”, Dorinha dizia sozinha no quarto escuro. “Nós perdemos tempo, mas o tempo não foge de nós, não se o tratarmos com respeito. Mas, esse não é o caso, meu caro.”

Dorinha tornou-se o espectro que tinha estado por trás dos anos de azar. Willy era aquele que quase a levara a loucura tantas vezes, o rosto que a assombraria para sempre. “Eu teria que me lavar 30 anos, me encharcar 30 anos, mergulhar na água 30 anos, mas nem assim eu me livraria do seu fedor, do cheiro de suas mentiras, que me agarra, me inunda. E o pior de tudo é que você se acha o Papa. Você acha que eu preciso de um Papa na minha vida”, dizia Dorinha para ela mesma. “Eu o deixei jogar todo seu escárnio em mim, o deixei me esbofetear, cuspir em mim, gastar seu cuspe em mim. Agora basta!”

Quando jovem, Dorinha tinha sido militante entusiasta da Ação Católica e sonhado mudar o mundo. Logo entendeu que, como todos os ideais coletivos, aquele era um sonho impossível. Quando era crente praticante sempre suspeitou que, apesar da confissão, não importava quão minuciosa ela fosse, um pouco de sujeira sempre ficava colada nas prateleiras da alma, algumas manchinhas rebeles e tenazes que a penitência não conseguia apagar.

O desperdício da sua vida, talentos e oportunidades é seu único débito que, talvez, ela não poderá saldar. Ficará eternamente no arquivo morto – como tudo o que escreveu desde que rompera com Nicola Lombardo. Em compensação, tinha seus momentos: fugia, resistia, teimava, esperneava, enrijecia seu corpo como um tijolo, parava de respirar e desmaiava. Os gestos disfarçados de mágoa ou raiva, os olhares rápidos e venenosos ou vidrados.

Exaurida Dorinha cedeu aos insistentes apelos da mãe e voltou para casa com seu filho, um menino que puxara seus cabelos, seus olhos, sua pele e um tanto da impaciência do pai. Incentivada pela família, decidiu passar uns tempos na Europa, na casa de uma prima que fixou residência em Chamonix, França, cidade fronteiriça com a Itália. Lá, cortou os cabelões à lá Garçonne, o que enfatizou seus traços delicados, sua pele rosada como algodão doce, seus belos cachos, e lhe deu um ar fresco e renovado. Estava decidida a esquecer o passado, embora o passado ainda tivesse nome e endereço e um incômodo cordão umbilical ainda não rompido. Willy não aceitou a separação, mas não estava disposto a reconquistá-la porque tinha como meta meter suas mãos na gorda herança que Dorinha possivelmente receberia quando a mãe morresse, mas a sogra tinha uma saúde de ferro e nada indicava que deixaria este mundo pelas próximas décadas e tantas.

Willy representava um papel. Dizem que todo mundo na vida está representando algum tipo de papel, de ator/atriz. A questão é saber quem escreve o roteiro: se somos nós ou se algum outro. Será que vale a pena perguntar quem seja? Quem tem o controle? O certo é que Willy estava encalacrado em sua própria armadilha. Começou a sair com mulheres com níveis de Q.I. e educação tão altos quanto o assento de um banco de praça. E daí para o fundo do poço foi um palito. Perdeu o apartamento, já tinha perdido Fernanda. Agora perdera Dorinha e a guarda dos dois filhos que teve com cada uma delas. Perdeu rios de dinheiro com mulheres, bebidas e jogatinas. Esqueceu em qual esquina deixou seu (pouco) caráter e sua (quase nula) hombridade. Devia a agiotas e figurões do crime. Virara um perdido. Quando soube que Dorinha estava na Europa ficou tão furioso que socou uma mulher e tomou duas cartelas de um forte medicamento para dormir com uísque barato. Vomitou as tripas, acordou enojado de si mesmo três dias depois na cama de um hospital com um processo de violência contra mulher movido pela vítima.

REENCONTRO – Em vez de se aventurar pela França, Dorinha, como boa italiana, pegou um trem e foi explorar algumas cidades de sua terra natal. A primeira parada foi Milão. Depois, Florença e, por fim, Roma, que amava. Mas precisava voltar logo porque não queria ficar muito tempo longe de seu filho.

Em Roma, ao chegar à porta de uma casa verde, conhecida como Casa Rosa, por ter sido essa a sua cor durante muitos anos, numa viela próxima ao Parthenon, Dorinha avistou uma silhueta familiar. “Será possível?” Ela andou mais devagar, apertou a vista e seu coração começou a bater forte, a garganta secou, as narinas se dilataram, as mãos ficaram suadas, os dentes apertaram e a face ficou vermelha por causa do afluxo de sangue. Era Nicola Lombardo. Totalmente diferente, mas, para Dorinha, impossível não reconhecer o grande amor da sua vida: barba feita, cabelos bem cortados, sapatos, camisa e calças descontraídas, mas dava para perceber, eram de grife. Uma longa e leve echarpe em tons cinza contornava seu pescoço. Ele estava sendo entrevistado por uma emissora de tevê local a propósito de sua vernissage naquela noite. Uma enorme faixa com seu nome e a foto de uma escultura estava pendurada na fachada de uma galeria de arte próxima dali.

Ela esperou a algazarra acalmar, tomou coragem e se aproximou. “Nicola?” Ele virou-se para a mulher, franziu a testa e abriu um largo sorriso. “Dorinha! Meu Deus, o que você está fazendo aqui?” “Estou de passagem, vou ficar pouco.” “Não, você não vai embora antes de ver minha exposição e antes de conversarmos um pouco. Precisamos colocar a vida em dia. Nossa, você está linda! Nossa, quanta coincidência!”

Dorinha corou. Não esperava aquela reação. Combinaram de se encontrar à noite, na vernissage.

A lua, um enorme disco amarelo pousava no céu azul marinho de uma noite ainda um pouco fria do abril europeu. Dorinha vestia um vestido leve, ligeiramente solto, corte clássico e abotoado do de decote até a barra. Por cima, um casaco de lã creme comprido e uma echarpe colorida. Lombardo vibrou com ela ali. No final do evento, a convidou para uma taça de vinho num local próximo da galeria. Ela aceitou.

Inteligentes e mais maduros, eles não queriam olhar pelo retrovisor. Sabiam o que queriam e o que não queriam da vida. Naquele momento, necessitavam saber tudo um do outro, mas seguir em frente. Nenhum dos dois revelava, mas desejavam um ao outro. Sabiam que os desafios e obstáculos eram muitos e era muito provável que nada aconteceria. Porém, os apaixonados transformam migalhas em banquetes e o encontro, que deveria ser apenas uma taça de vinho, acabou por alongar-se noite adentro e Dorinha acordou na cama de Lombardo.

MOLDE DE ESPAGUETE – Dorinha e Lombardo conversaram como velhos amigos íntimos. Riam muito. Lombardo era um piadista, tinha um bom-humor contagiante e fazia Dorinha rir até doer o maxilar e a barriga. Andaram pelas ruas e vielas de Roma durante muito tempo lembrando histórias, pessoas, passagens que viveram juntos, o que aconteceu com a vida de um e de outro. De chofre, Lombardo pegou os braços de Dorinha, olhou em seus olhos e disse “Venha para o meu apartamento”. Pega de surpresa, ela retribuiu o olhar. “O que?” “Venha para o meu apartamento. Não se preocupe. É só para um café. Para terminarmos a noite com um café. A esta hora está tudo fechado.” “Então vamos”, ela concordou sem hesitar e os dois saíram saltitantes e rindo.

Lombardo morava um tanto longe de onde estavam, na Vila Borghese, um bairro de classe nobre romana. Como combinado, preparou café e colocou várias panelas de água para ferver. “O que você está fazendo?”, questionou. “Estou com fome. Vou fazer uma pasta. “Boa ideia, na verdade eu também estou com fome.”

A intenção, no entanto, era fazer um molde de Dorinha – com macarrão. Como escultor que alcançou relativo renome em parte da Europa, Lombardo não ia perder a oportunidade de moldar sua ex-namorada. “Agora quero que você seja minha modelo para uma escultura, topa?” “Como assim?” “Simples: eu vou fazer um molde do seu corpo, mas do meu jeito. Você só precisa dizer sim.” “Ah, você está de brincadeira. Que ideia louca! Como seria isso?”

Com os olhos fixos nos dela, ele acariciou seus cabelos, seu rosto e desabotoou seu vestido. Dorinha estava completamente desarmada (vem, faça o que quiser comigo, meu homem), sua pele arrepiada, pupilas dilatadas. Nua, ele a deitou em sua grande mesa de cozinha, acariciou seus cabelos e sua nuca. “Você está mais linda do que nunca com esse cabelo. Eu posso ver sua nuca, saborear sua nuca.” Dorinha riu, tremeu de prazer e pediu um travesseiro.

Ele esperou o macarrão amornar e delicada e lentamente foi cobrindo partes de seu corpo: fez círculos perfeitos com espaguete em seus seios pequenos e firmes, apesar da gravidez, deixando apenas os bicos a mostra. Cobriu as pernas com cabelinho de anjo, arranjou o púbis com o tipo parafuso, tentando manter a linha entre as pernas e seus pelos. E, no umbigo, acrescentou uma única gravatinha. Fios de água com amido escorriam por suas curvas.

Dorinha ria, tremia, se sentia excitada. “Seu doido.” “Agora é só deixar secar, tirar com cuidado e pronto, seu molde está pronto.” “Ah, eu estou com frio, não vou aguentar até isso tudo secar. Tira, eu não vou conseguir.” “Espera um tiquinho mais, vai.”

Antes de desnudar a ex-namorada dos macarrões, Lombardo a fotografou na mesa de madeira clara como Álamo em contraste com aquela pele rosada. Uma pose amolecida, lânguida, como se ela acabasse de acordar de um sono extremamente regenerador. Seu semblante era de encanto. Ao tentar tirar “os moldes”, a massa virou uma maçaroca que acabou com os dois no chuveiro. Fizeram amor várias vezes, por vários lugares do apartamento, até depois do amanhecer, quando o dia ainda lutava com a noite para aparecer. Havia confiança, havia interesse, havia amor, havia verdade, havia desejo, havia comunhão naquela relação. O verdadeiro amor entre eles não havia desaparecido. Estava guardado em alguma caixinha da alma todo o tempo esperando para novamente aflorar.

A FAMA – O sol brilhava forte quando acordaram. “Que horas são? Meu Deus, preciso ir.” “Fique comigo, não vá ainda.” “Não tenho roupas.” “Use as minhas agora. Depois passamos em seu hotel e pegamos uma muda. Agora fique comigo.” Dorinha ficou. Queria ficar. Limparam o apartamento, pegaram um táxi até o hotel onde ela estava hospedada e foram almoçar num restaurante pequeno, reservado e chique. Anoiteceu e ela continuava com ele, pelas ruas, tomando um gelato, um café ou uma taça de tinto, degustando um doce típico romano, ou em seu apartamento. Riram muito, se divertiram à beça. Comeram, beberam, fizeram amor, dormiram, fizeram amor de novo e de novo, até que, quase uma semana depois, o coração de Dorinha começou a apertar. Precisava voltar para Chamonix, ver seu filho e retornar ao Brasil.

Não queria ficar longe de Lombardo. Então fez a pergunta fatal: “Volte comigo para São Paulo. Podemos ter uma vida lá, só nós três. Vamos tentar de novo? Você não acha que vale a pena?” Lombardo demorou alguns segundos para responder. “Dorinha, eu te amo, eu te amo mesmo, muito. Mas tenho uma carreira aqui. Não posso largar tudo e voltar ao Brasil com você. Lá não tenho espaço, não terei nome nem ganha-pão, você sabe disso. Não posso ir.”

“Você disse que me ama?” “Sim, disse que amo você, e muito.” “Então você prefere abrir mão de nós e ficar aqui, não quer nem tentar trabalhar no Brasil?” “Você sabe que que não daria certo, não na minha área.”

O “não” fez flautas e violinos chorarem em seu coração. No fundo ela já sabia a resposta, mas arriscou. Há dias em que a sorte nos falta e esse era um deles. Lembrou de uma frase repetida à exaustão por seu pai como advogado, tanto que ficou gravada em sua memória de criança: “A glória só se alimenta de mais glórias e raro é aquele que se contenta com o vinagre da obscuridade depois de provar o vinho da fama.”

“Eu entendo”, disse desalentada. Levantou-se da cama e vestiu-se rapidamente. Queria sair de lá antes que lágrimas escorressem por seu rosto. Olhou-se no espelho, viu sua alma em close up e o mundo inteiro desmoronar na sua cabeça. Só lhe restava o filho, a quem estaria eternamente apegada e se sentia abençoada por isso. Deu um beijo na testa de Lombardo e quando pegou na maçaneta ele a segurou pela cintura. Suas mãos acariciaram seu rosto rosado agora pálido e ele lhe deu um beijo agoniado. Ele não a queria longe. Olhos marejados, ela afundou seu rosto no peito dele, retribuiu o beijo e saiu correndo.

Na frágil noite tudo se partia. O passado, o presente e o futuro iam caindo aos pedaços. Só a fragrância do corpo de Dorinha, que a acompanhava feito uma luz e uma doçura invisível, permanecia incorruptível como o sol. Lombardo sabia o que havia dentro dessa mulher e, talvez, por isso, a amasse tanto.

RECOLHIMENTO – Risos, sonhos, ilusões, desilusões, lágrimas, sonhos destruídos… isso é o amor? Ou isso também faz parte do amor? Doralice Ricci não queria saber a resposta naquele momento. Muitas vezes, não saber é melhor que saber. Pensava apenas se conseguiria educar bem, dar amor o bastante para seu filho. O resto era apenas o resto. Nada mais importava. Excluiu-se da sociedade, afastou-se dos amigos, poucas vezes encontrava seus irmãos, todos casados e bem de vida. Willy havia morrido de um mal súbito há alguns anos e ela sentiu alívio por isso, embora não fosse casada no papel com ele. Muita gente se sentiu aliviada com a morte de um homem inconveniente como Mariano Willy, especialmente Fernanda de Albengarti, com quem tinha casado de papel passado. A bebida e a vida desregrada contribuíram para sua morte prematura. Doralice Vivia apenas pelo filho e para escrever. Publicou dezenas de livros, mas manteve-se isolada. Assim foi por anos a fio.

PARA SEMPRE – Do outro lado do mundo, um coração partido jamais fora colado. Nicola Lombardo nunca esqueceu Dorinha e seu amor só aumentou, especialmente porque tinha poucas notícias dela e muita saudade; seu coração doía de saudade. Por várias vezes quis pegar um avião e trazer Dorinha para sua vida definitivamente, mas teve medo, falta de coragem, excesso de orgulho. Ela toparia? Ou o rejeitaria? Nãopagou para saber. Um sábio diria que muitas vezes o excesso de prudência serve de máscara à covardia.

Lombardo nunca se casou, teve namoradas pelas quais não se apaixonou, e manteve seu lar na Vila Borghese, em Roma, mas mudou-se para uma grande casa. A foto de Dorinha “moldada” em macarrão estava pendurada numa das paredes de destaque da casa. Nada o faria desapegar daquela foto em preto e branco que ele amava.

Para um artista vivo, alcançara fama suficiente para ter obras até mesmo no MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova York e em várias unidades do Guggenheim. Suas peças, esculturas, pinturas e objetos de design, eram expostas e vendidas por toda a Europa Ocidental e Oriental, pelos Estados Unidos, países nórdicos e alguns asiáticos, e finalmente, na América do Sul, incluindo o Brasil. Mesmo assim, Dorinha não soube, ou preferiu não saber, mais do seu paradeiro.

Até que, perto de completar 60 anos de idade, filho formado com doutorado, casado, já avó de uma linda garotinha ruiva e bem-sucedida como escritora, decidiu que era hora de sair “do luto” que o amor lhe impregnou – que muito se parecia com uma rede de fios entrelaçados, retorcidos e enferrujados – e voltar à Roma. Seu destino na cidade era a Vila Borghese.

Ele soube. Ele, e não ela, a encontrou. Desta vez, para sempre.

Cláudia Bergamasco é escritora

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