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O raiar do país fundamentalista
Por José Arnaldo de Oliveira
Um dos grandes artistas de todos os tempos, o pintor e gravador espanhol Francisco de Goya, produziu na virada entre os anos 1700 e 1800 uma série dentro de sua grande produção artística com obras que alertavam para o risco do abandono do mínimo da racionalidade.
Sua época coincide com as guerras napoleônicas que atingiram seu país e levaram a corte da vizinha Portugal a se transferir para o Brasil, iniciando o longo processo pós-colonial. E o que basicamente diz sua obra filosoficamente mais famosa é “o sono da razão produz monstros”.
O alerta parece muito atual. Um valor desenvolvido ao longo desses duzentos anos, a liberdade de expressão e de pensamento, está sob pleno ataque frontal em nosso país. Principalmente em suas variações de liberdade artística, de liberdade religiosa e de liberdade de comportamento.
A razão nos aconselharia a evitar de imediato o convite ao extremismo proposto pelos grupos muitas vezes violentos envolvidos nessa desconstrução. Mas cobrando a busca de outro tipo de resposta.
Em primeiro lugar, buscando os pontos de convergência dentro dos campos liderados fisicamente ou virtualmente pelos pregadores do ódio. A luta contra a violência contra mulheres, por exemplo, deve estar acima das suas posições sobre o parto natural, o aborto ou a orientação sexual.
Da mesma forma, em um segundo exemplo, a convergência em torno das oportunidades de educação para crianças e jovens pode reunir pessoas acima de suas diferenças sobre partidos, religiões ou opiniões sobre a melhor forma de políticas para as drogas.
Parece difícil, mas o velho alerta de Goya deve nos rondar sempre – o sono da razão produz monstros.
É claro que os monstros já foram criados. Existem líderes religiosos que se desviaram de sua missão, militares ameaçando a volta de um regime de força, latifundiários cogitando levar o país de volta para a exploração do pau-brasil e assim por diante. Mas dentro desses mesmos setores ainda há vozes sensatas mesmo em minoria.
O chamado a um mínimo de razão como ponto de apoio pode até ser inútil quando o contágio de milhões atingir um consenso de que não vale a pena.
Mas não interessa se você se considera de direita ou esquerda, conservador ou progressista. O risco de um estado fundamentalista está raiando no horizonte e cabe a todos nós melhorarmos a capacidade de diálogo em torno de convergências, porque são grupos que começam pequenos que fizeram momentos tristes ao longo da história.
José Arnaldo de Oliveira é jornalista e sociólogo